Modelos e singularidades na teoria musical luso-brasileira do Antigo Regime. A Escola de Canto de Orgão de Caetano de Melo de Jesus (Salvador da Bahia, 1759-60)

Abstract

Estudo de caso e análise comparativa do tratado manuscrito Escola de Canto de Orgaõ (1759-60), em dois volumes, de Caetano de Melo de Jesus (ca. 1700 – ca. 1770), mestre de capela da Catedral Primaz da Bahia. Com cerca de 1.240 páginas, constitui a mais extensa obra de teoria musical em língua portuguesa do Antigo Regime, dotada de um extenso aparato teórico. O estudo permitiu identificar os modelos de teoria musical em circulação no espaço luso-brasileiro e a receção teórica no quadro de uma escolástica tardia. Entre referências a centenas de autores são citados cerca de 70 tratados de música europeus dos séculos XVI e XVII e alguns do século XVIII, da Península Ibérica. A intensa intertextualidade da obra assume formas como a transcrição, a paráfrase e a tradução de tratados de outras geografias. Com um investimento maciço na musica speculativa, a Parte II configura um extenso tratado de proporções harmónicas com 490 páginas. Embora parte do texto não seja original, a singularidade reside por vezes na mediação e reelaboração de textos originados noutras línguas e geografias. Realizada a transcrição diplomática integral dos manuscritos da Escola de Canto de Orgaõ, incluindo as polémicas em apêndice, os conteúdos teóricos foram objeto de uma análise comparada, confrontados com os de outros tratados de música da Península Ibérica dos séculos XVII e XVIII. A investigação permitiu contrastar o perfil do baiano com o de outros teóricos peninsulares, em torno de questões como a relação com os «Practicos», ou as adaptações teóricas face à prática musical corrente, tanto no campo tonal, como no da mensuração do tempo ou dos sistemas de afinação. A dimensão polémica do tratado baiano foi situada no contexto histórico local, designadamente a rivalidade entre diferentes instituições produtoras de música sacra. O estudo assumiu três vertentes: o exame da «fisiologia» do tratado, isto é, das relações dinâmicas que ela estabelece com outras obras no exterior, e da auto-representação da figura do autor e do seu capital de erudição (ethos); a «anatomia» dos conteúdos, sua conceptualização e posicionamento na evolução do pensamento ocidental sobre a música (logos); a «patologia» do tratado, ou a tensão polémica e a conflitualidade subjacente, com a identificação dos antagonistas do autor, incluindo os adversários locais e alguns teóricos espanhóis (pathos).

A case study and comparative analysis of the manuscript treatise Escola de Canto de Orgaõ (1759-60), by Caetano de Melo de Jesus (ca. 1700 – ca. 1770), a chapel master at the Cathedral of Bahia, Brazil, in the mid-18th century. This treatise on music – the largest in Portuguese language of the Ancien Régime – was written in Salvador, later sent to Lisbon and preserved, unpublished, at the Evora Public Library. The study deals with theoretical reception and circulation of intelectual models in the Portuguese-Brazilian empire. A number of 70 European musical treatises are quoted, alghough only a few were used as close models and sources of emulation. A highly intertextual work, the Escola de Canto de Orgaõ presents interesting patterns of cultural mediation and adaptation of musical thought from different geographical contexts into a particular historical framework where scholasticism was still an important cultural model. Part II of the manuscript consists of a vast treatise on musica speculativa of 490 pages. Althought not entirely original, Melo de Jesus reelaborated other European treatises on harmonic proportions, showing a vast erudition. A full diplomatic transcription of the manuscripts was completed, and the texts were subject to comparative analysis with other Portuguese and Spanish music treatises of the 17th and 18th centuries. The comparative research revealed Melo de Jesus’ high profile amongst local practical musicians, in open constrast with other theorists of the Iberian Peninsula, who were more flexible and open to modern adaptations of theory to current musical practice. Contrasts and common values were found in issues such as tonal organization, mensuration of time, and intonation. Two discussions included as appendixes to Part II are studied in the local historical context, namely the rivalry between Cathedral musicians and those of other religious centres. The study highlighted three different dimensions: the work’s «physiology», meaning the intertextual relationships with many other treatises and the author’s self-representation as a local erudite (ethos); the «anatomy», or analysis of theoretical contents, conceptualization, and its place in the evolution of Western musical thought (logos); and the work’s «pathology» or tension in terms of conflict and controversy, either in relation to local antagonists, or to «modern» Spanish music theorists (pathos).