Heroínas da ópera do primeiro romantismo: as vozes de um discurso de género no Bel Canto

Abstract

Este trabalho investiga a representação feminina na ópera italiana da primeira metade do século XIX através dos sistemas de significação emanados dos discursos intertextuais da dramaturgia musical, procurando identificar as operações de poder que se estabelecem entre os géneros. A dramaturgia musical do primo ottocento apresenta-se, em grande medida, como um microcosmo da nova ordem social que emerge da reconstrução político-social europeia após a Revolução Francesa e o Congresso de Viena. Neste processo transformador das sociabilidades, a condição feminina e o papel da mulher reconfiguraram-se, bem como as relações entre os géneros e os respetivos papéis sociais. Sendo a construção social determinante na formação dos cânones de género, é através da cultura - o conjunto de interligações entre o conhecimento e o comportamento - que estes se consolidam e se perpetuam. Sem surpresa, a ópera, género artístico agora destinado à nova classe burguesa, foi acompanhando e contribuindo para a normalização de tipologias de género moldadas por uma cultura patriarcal reforçada que, se por um lado colocava a mulher no centro das narrativas como figura aspiracional idealizada, por outro, mostrava-se inclemente com personagens femininas que se constituíssem como símbolos de divergência à hegemonia do poder masculino no quadro de uma estética que privilegiava o fatalismo como pathos dramático. Desde as heroínas inocentes e castas, às insanas por amor, passando pelas vítimas de amor-posse e de ciúme, e ainda, às transgressoras e suicidas, esta investigação debruça-se sobre a forma como o sistema operático refletiu a mulher oitocentista e sobre os mecanismos de afirmação de poder da heroína do bel canto por entre a estrutura de valores patriarcal.

This study investigates women’s representation in Italian opera in the first half of the 19th-century and analyzes the intertextual discourses of musical dramaturgy through the systems of meaning of musical dramaturgy to uncover the underlying power dynamics and interactions between different genres. The musical dramaturgy of the primo ottocento presents itself, to a large extent, as a microcosm of the new social order that emerged from the European political and social reconstruction after the French Revolution and the Congress of Vienna. During this transformative process of sociability, not only were the roles of women and the female condition reconfigured, but also the relationships between genders and their corresponding social roles underwent significant changes. The formation of gender canons is heavily influenced by social construction, and it is through culture—the interconnectedness between knowledge and behavior—that these canons are solidified and perpetuated. Not surprisingly, opera, as an artistic genre aimed at the new bourgeois class, both accompanied and played a role in normalizing gender typologies shaped by a reinforced patriarchal culture. On the one hand, it placed women at the center of narratives as idealized, aspirational figures. However, on the other hand, it depicted with inclemency female characters who emerged as symbols of divergence from the hegemony of male power, within an aesthetic framework that favored fatalism as a dramatic pathos. Innocent and chaste heroines, driven to insanity by love, victims of possessiveness and jealousy, transgressors and suicides, the focus of this study is to examine how the operatic system reflected the 19th-century woman and how the bel canto heroines asserted and established their power within the patriarchal value structure.